Philip Glass: uma cerimônia secreta
[ensaio publicado no Suplemento Literário de Minas
Gerais, abril/1997]
por Mário Alves Coutinho*
Beauty is truth, truth beauty, — that is all
Ye
know on earth, and all ye need to know
[John Keats, “Ode on a Grecian Urn”]
A beleza é a verdade, a verdade
beleza
— É tudo o que há para saber, e nada
mais.
[tradução
de Augusto de Campos]
Philip Glass
(31/1/1937-), compositor americano, alguns anos atrás [em 12/1/1996], deu um
concerto em Sydney, Austrália.
Vê-lo tocar na Opera
House de Sydney (uma das obras-primas da arquitetura moderna) algumas das suas
peças para piano (solo) foi um espetáculo verdadeiramente religioso, ainda que
singularmente contido. Ali estava um dos maiores compositores modernos sem o conjunto
com o qual trabalha habitualmente – The Philip Glass Ensemble –, nenhuma
amplificação, nenhuma companhia de ópera, nenhuma orquestra, cantor algum, apenas
cercado pela audiência por todos os lados (e não na sua frente e distanciado da
plateia, como é comum nas salas de concerto), como que fechando um círculo
mágico.
Ele chegou, se
sentou, concentrado, parco na sua gesticulação e expressão facial. Suas mãos
começaram a se movimentar e, subitamente, do piano começaram a sair harmonias
claras, lógicas e rigorosas. Sons exatos, puros, quase matemáticos, de tão
precisos: não é por acaso que ele é chamado de “minimalista”, embora sempre
diga que nunca pertenceu a nenhuma escola e que o termo não foi escolha sua.
(Apesar de sua discordância, se a definição de “minimalista” for “expressar o
máximo, com o mínimo de recursos”, não vejo como não aceitar essa
classificação: ao contrário, ela define muito bem a sua música.)
Compositor de óperas
(“Einstein on the Beach”, 1975; “Satyagraha”, 1980; “Akhnaten”, 1985; “La Belle
et la Bête”, 1994), trilhas sonoras para teatro (“The Photographer”, 1983;
“1000 Airplanes on The Roof”, 1989; “The Screens”, 1992), balé (“Dance Pieces”,
1982; “Dance Numbers 1-5”,
1988), e cinema (“North Star”, 1977; “Koyaanisqatsi”, 1983; “Mishima”, 1985;
“Powaqqatsi”, 1988; “Anima Mundi”, 1993; “Thin Blue Line” e “A Brief History of
Time”), Philip Glass trabalha, também, numa vertente mais sinfônica: “Low
Symphony” (1993), uma colaboração especial e diferente entre Philip Glass,
David Bowie e Brian Eno, e “Itaipu” (1988), em que, no quarto movimento, ele
usa a língua dos índios brasileiros, o guarani (ele que já usara a língua hopi,
dos índios norte-americanos, em “Koyaanisqatsi”). Seu contato com o Brasil,
aliás, não para aí: uma de suas mais emocionantes peças para piano (da qual ele
tocou alguns movimentos neste concerto de Sydney) foi composta para uma
montagem do diretor brasileiro Gerald Thomas. Ele é o autor, também, de
belíssimas (sublimes seria a palavra mais justa) peças para piano: “Glassworks”
(1982), “Solo Piano” (1989) e “Six Études” (obra em progresso).
Uma das
características definidoras de sua obra: a participação do público (ou melhor,
do ouvinte), cantando interativamente com os seus intérpretes. Você duvida?
Coloque no seu CD (ou eletrola) “Koyaanisqatsi”, “The Photographer”, “Songs from
Liquid Days” (l986), “North Star”, “Akhnaten” ou “Satyagraha”, e imediatamente,
sem querer, sem mesmo notar, você estará vocalizando junto com os cantores.
Sons primitivos, além das letras, eis o que torna fácil (?) e exaltante
acompanhar qualquer música de Philip Glass; mesmo quando não existe voz na
gravação, sentimos um convite (desejo?) explícito: colocarmos a nossa. Poucas
vezes o simples ato de ouvir música terá se transformado em uma experiência tão
eminentemente dionisíaca, quer dizer, tão reverentemente mística.
Alguns exemplos
disso? A entonação da palavra “koyaanisqatsi” (do hopi, significando, entre
outras coisas, “vida fora do equilíbrio” ou “uma maneira de viver que pede uma
outra vida”), na obra de mesmo nome, repetida durante quase toda música. Ou,
então, uma flauta repetindo obsessivamente a mesma frase, contra a orquestra,
em “Offering”, do disco “Passages” (1990), realizado conjuntamente com Ravi
Shankar. (“Ravi, e não as drogas propriamente ditas, foi minha verdadeira
viagem de LSD”, disse Glass em uma entrevista.)
Na verdade, o que
Philip Glass canta em sua obra é o respeito pela Terra e pelos homens (numa
outra entrevista, ele disse que sua obra é programática, e que quase toda ela
nasceu como uma resposta à natureza). Sua música faz lembrar a última frase de
“The Marriage of Heaven and Hell” (“O casamento do Céu e do Inferno”), do poeta
inglês William Blake (1757-1827), “For every thing that lives is Holy” (“Tudo
que vive é Sagrado”). Exatamente: a reverência aqui, como na música de Philip
Glass, não se dirige a nenhuma divindade, mas à vida. A vida mesma é sagrada, e
não a vida depois da morte, como quer o cristianismo.
Ouvindo Philip Glass
na Opera House, ficou claro por que sua obra é tão importante: música de
vanguarda sim, inteligente, inovadora, muitas vezes difícil e rarefeita, mas,
ao mesmo tempo, primária e primordial. E que, mais importante do que qualquer
coisa, continua uma das mais gloriosas tradições ocidentais, aquela, específica,
de Mozart (1756-1791), Schubert (1797-1828), Chopin (1810-1849) e Eric Satie
(1866-1925), eles também compositores de ópera (Mozart), canções (Schubert e
seus “lieder”) e de peças para o piano ao mesmo tempo elegantes, contidas e “minimalistas”
(todos eles). A grandeza de Philip Glass está exatamente aí, na reconciliação
dialética que sua música promove entre vanguarda e tradição, o extremamente
simples (primário, mesmo) e o magnificamente refinado.
Numa época da
história do ocidente em que abundam os comportamentos destrutivos e a
liquidação de outras tradições (inclusive as musicais) e culturas passou a ser
quase que a norma, é reconfortante perceber que ainda sobrevivem algumas
tradições propriamente “civilizadas” no mundo ocidental. Sentar numa sala de
concerto, silenciosa e reverentemente, e presenciar a criação de novas
harmonias, por alguns compositores de gênio e interpretadas por eles mesmos, é,
certamente, participar de uma cerimônia imemorial: a descoberta da beleza e da
verdade, e da equivalência entre elas (como queria John Keats, 1795-1821, poeta
romântico inglês). Ou, como disse James Joyce (l882-1941), esta seria uma epifania,
“aparição ou manifestação divina, festividade religiosa com que se celebra esta
aparição”, segundo o Novo Dicionário Aurélio.
Ao ouvir Philip
Glass em Sydney, escutávamos sua música incomparável, única, diferente. Ao
mesmo tempo audiência e compositor, estávamos, todos nós, uma vez mais,
celebrando um ritual tradicional, secular, quase imemorial. Philip Glass
naquela noite era, felizmente, Philip Glass; mas era, também, ao mesmo tempo e
sucessivamente, Mozart, Schubert, Chopin e Eric Satie.
~*~
Entrevista com Philip Glass: uma música que
leva ao êxtase
[entrevista
realizada em Sydney, no dia 11/1/1996, no Hotel InterContinental, e publicada
no Jornal Estado de Minas em 5/5/1996]
por
Mário Alves Coutinho*
Nascido em 1937 sob
o signo de Aquário, o compositor estadunidense Philip Glass sempre esteve longe
de ter uma carreira retilínea: ele é, na verdade, a contradição em pessoa.
Considerado um autor de vanguarda no início da carreira (década de 1960), hoje
já se pode argumentar que ele é um dos compositores mais respeitados da música
erudita e um dos mais escutados. Será mesmo?
Na
década de 1960 (e mesmo na de 70) sua obra realmente tinha todos os signos
exteriores da novidade extrema: ele fazia música erudita, mas com uma diferença
fundamental, a amplificação (só o rock e o pop, naquele momento, usava esse
recurso); óperas sem uma linha dramática definida, nas quais o que era cantado
podia não ser diálogos, mas números (one, two, three..., por exemplo, em “Einstein
on the Beach”, 1976); ou, ainda, óperas cantadas em línguas ditas exóticas
(e/ou mortas): sânscrito (“Satyagraha”, 1980), aramaico e hebraico (“Akhnaten”, 1984); uma música que, para a maioria das pessoas, não mudava nunca,
repetindo indefinidamente a mesma linha melódica; um rótulo extremamente
apropriado para um movimento de vanguarda:
minimalismo; e, finalmente, o atestado definitivo, naquela época
contestatória: nos seus concertos, somente seis pessoas na plateia, sendo que
uma delas era sua própria mãe...
Hoje,
Glass enche qualquer sala de concerto, mas sua sede pela inovação continua a
mesma. Uma das óperas que realizou foi “La Belle et la Bête” (1994), baseada no
filme homônimo de Jean Cocteau (1889-1963), realizado em 1946. Como aconteceu
essa colaboração diferente, na qual o autor do libreto (Cocteau) já estava
morto? Glass pegou a fita de Cocteau, desligou o som original, e compôs uma
outra trilha sonora, totalmente sincronizada em relação ao filme: aqui, os
diálogos originais se transformaram em árias que foram cantadas, então, por
cantores de ópera.
Na
entrevista que fiz com ele em Sydney, Austrália (1996), ele falava de uma
novidade que estava pensando desenvolver: a ópera interativa. O público (ou o
ouvinte) cantando junto com os cantores? Com Philip Glass, nunca é bom duvidar
de seus projetos, pois ele sempre realizou o que imaginava, por mais difícil
que tenha sido.
Mário
Alves Coutinho: Interpretar
sua própria música é uma escolha ou uma necessidade?
Philip
Glass: Quando
voltei para os Estados Unidos, em 1968, e compus meus experimentos minimalistas
mais extremos, não encontrei ninguém disposto a interpretar. Por isso mesmo,
formei meu próprio conjunto. De cara, descobri que podíamos interpretar minha
obra melhor do que qualquer outra pessoa (ou grupo): simplesmente podíamos dar
a ela a atenção que nenhum outro intérprete daria. O segundo motivo ficou
evidente mais tarde, quando comecei a fazer concertos-solo de piano. No início,
eu tocava órgão, mas apareceu então um problema com o qual eu não contava: não
existe um órgão de igreja igual ao outro, todos eles são diferentes. Com o
tempo desisti, e passei a usar o piano. No começo, eu só tinha arranjos de
algumas óperas (“Satyagraha”, “Einstein on the Beach”, por exemplo). Aos
poucos, comecei a compor coisas novas, especialmente para o piano.
Mário
Alves Coutinho: Alguma
lembrança especial daquela época?
Philip
Glass: Lembro-me
do primeiro concerto que dei, no Queens College, em Nova York. Pude contar seis
pessoas na audiência, sendo que uma delas era minha própria mãe. Os outros
cinco ouvintes tinham todos cabelos longos... Minha mãe olhou para mim e disse:
“Todos eles são seus amigos, não?” Sete anos depois ela veio de novo à cidade,
no Metropolitan Opera House, para ver “Einstein on the Beach”; desta vez pôde ver quatro mil pessoas
na plateia, nem todas elas meus amigos...
Mário
Alves Coutinho: Mudou
muito de lá para cá?
Philip
Glass: O
concerto que estou fazendo nesta turnê, por exemplo, é sempre dado em salas com
enorme capacidade de público. E, no entanto, é como se eu conhecesse todos os
espectadores. Quando sento ao piano, penso que estou tocando para cada uma das
pessoas da audiência. Quando isso realmente acontece, consigo estabelecer a
relação essencial que existe entre a música, a interpretação e a audiência. Um
dos segredos para se conseguir isso, além do mais, é ser capaz de (re)descobrir
a música que você está fazendo, a cada vez que a interpreta.
Mário
Alves Coutinho: Quando o Philip Glass compositor percebeu que não precisava
mais ser Philip Glass chofer de táxi e bombeiro?
Philip
Glass: Eu me lembro muito bem da ocasião. Foi em 1978, quando eu
tinha 41 anos. Mas veja bem: quando eu tinha 30 anos e já havia formado meu
conjunto, já me achava um compositor bem-sucedido. Tinha meu próprio conjunto,
fazia uma excursão por ano nos Estados Unidos e na Europa, e estava tocando
para uma audiência que era pequena, certamente, mas era minha, pelo menos... Não
achava, naquela época, que a vida poderia ficar muito melhor do que já era.
Como tinha meu próprio conjunto, eu não dependia de comitês, faculdades ou
festivais. Nos Estados Unidos, não existe o mínimo apoio às artes. Portanto,
tive que trabalhar em ocupações que podia abandonar facilmente, fazer uma
excursão e voltar novamente. Fiz todo tipo de coisas. Foi aos 41 anos que
obtive a primeira comissão para fazer uma ópera, “Satyagraha”, pela qual fui
pago cerca de 25 mil dólares que, naquela época, era muito dinheiro...
Mário
Alves Coutinho: Existe alguma relação entre o fato de seu pai ter sido dono
de uma loja de disco e sua profissão?
Philip
Glass: Acho que sim. Comecei a trabalhar com ele com 12 anos,
ainda na época dos discos de 78 rotações. Você podia, então, devolver 5% dos
discos não vendidos, mas antes os discos tinham que ser quebrados. Meu trabalho
consistia em pular sobre os discos, e quebrá-los. Será que isso criou, na minha
cabeça, uma perspectiva deformada sobre a música? Até hoje não tenho resposta
para essa pergunta...
Mário
Alves Coutinho: Sua música, de alguma maneira, convida o ouvinte à
participação. Você concorda com esse conceito?
Philip
Glass: Esta é, simplesmente, a questão fundamental da música
(arte) moderna. Nas minhas óperas, por exemplo, a história é completada pela
audiência. Essa é a lição que aprendemos com Duchamp, essa é a lição levada
adiante por John Cage, em que, para se falar a verdade, as obras são
completadas pela audiência. Quando eu era jovem, era comum essa ideia do “som
em si”. As pessoas achavam que se podia encontrar obras que tinham vida
independente do ouvinte. Para mim, uma obra nasce somente quando é interpretada
na frente da audiência: é somente nesse espaço entre a obra, o compositor e o
ouvinte que ela passa a ter uma existência tangível. Sem esse espaço, eu diria
que a música não foi realmente concebida.
Mário
Alves Coutinho: Você estudou matemática na universidade. Alguma conexão
entre sua música e a matemática?
Philip
Glass: A conexão está no fato de a música ser uma linguagem
abstrata, exatamente como a matemática. Uma diferença fundamental: a música
emociona as pessoas facilmente.
Mário
Alves Coutinho: Como você conheceu o grupo Uakti, para o qual produziu
alguns discos?
Philip
Glass: Eu os descobri quando eles estavam gravando “The Rhythm of
the Saints”, com o Paul Simon. Paul me perguntou se eu queria ouvi-los, no Rio
de Janeiro. Gostei demais. Quando comecei meu selo, na companhia onde gravo,
perguntei a eles se queriam que eu os produzisse. Já gravamos três discos. Eles
são simplesmente ótimos.
Mário
Alves Coutinho: O que distingue suas óperas da tradição operística
ocidental?
Philip
Glass:
O “algo mais” que distingue o teatro moderno é o trabalho feito conjuntamente
por escritores, dançarinos, coreógrafos, compositores, diretores. A maneira
antiga das pessoas trabalharem, uma única pessoa que “imaginava” uma obra e a
realizava sozinha, não acontece mais. Todas as óperas que eu fiz envolveram um
verdadeiro grupo de pessoas. Sempre tenho pelo menos uma pessoa nova para meus
trabalhos em colaboração: nunca trabalho com o mesmíssimo grupo. É claro que
repito algumas colaborações – Doris Lessing, a escritora, e Bob Wilson, diretor
de teatro, por exemplo – porque gosto da continuidade, também; mas acho
essencial trabalhar com gente que não conheço, mais jovem do que eu, o que se
torna cada vez mais fácil a cada ano que passa...
~*~
* Mário Alves Coutinho é doutor em Literatura Comparada pela
UFMG. Escritor, tradutor, ensaísta e crítico de cinema, entre suas principais
obras publicadas estão: “Aforismos musicais – extraídos de sua correspondência
completa”, de W. A. Mozart (org./tradução, Tipografia Musical, 2016); “A
explosão e o suspiro ou um corpo que cai” (romance, Tipografia Musical, 2015);
“O realismo impossível”, de André Bazin (org./tradução, Autêntica, 2016);
“Godard, cinema, literatura” (entrevistas, Crisálida, 2013); “Escrever com
câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard” (tese, Crisálida,
2010); “Tudo que vive é sagrado”, de William Blake e D. H. Lawrence (org./tradução,
Crisálida, 2010); “Canções da inocência e da experiência”, de William Blake
(tradução, Crisálida, 2005); “O livro luminoso da vida”, de D. H. Lawrence (org./tradução,
Crisálida, 2010); entre outros.