por Mário Alves Coutinho*
Como a música é a única linguagem com a qualidade característica
de ser ao mesmo tempo inteligível e
intraduzível, o criador musical é um ser comparado aos deuses (...)
Claude Lévi-Strauss,
em O cru e o cozido
Na cultura ocidental, desde pelo menos o fim do século XIX, Wolfgang
Amadeus Mozart tem ocupado um lugar divino: anjo tutelar, deus desligado da
vida e aflições terrenas, ele teria criado a música mais celestial, equilibrada
e paradisíaca que alguém jamais compôs. O descuidado Tchaikovsky chegou,
inclusive, a compará-lo a Cristo: “Mozart era um ser tão angélico, tão
infantil, tão puro: sua música é tão repleta da divina e inacessível beleza
que, se alguém pode ser designado como Cristo, é ele.”
Até mesmo um mozartiano mais cuidadoso, como Otto Maria Carpeaux, caiu na
cilada do deus/Mozart: “não há, em Mozart, nenhuma relação seguramente
verificável entre a obra e a vida. Nos momentos mais desolados, de falta de
dinheiro ao ponto de ele e a família passarem fome, de morte de filhos
recém-nascidos, escreveu música da maior eufonia...” (em Uma nova história da música). Mesmo tentando desfazer a mitologia
angelical Carpeaux a multiplica: “Mozart não foi um anjo (...) Anjo só foi no
sentido em que Rilke fala dos ‘anjos terríveis’, de aspecto insuportável para
nós outros porque são espelhos da perfeição divina.” É como se Mozart não
tivesse passado pela vida, suas contradições e ambivalências, e houvesse
composto suas obras-primas no interior de uma indiferenciada essência divina,
distante do sofrimento e do aprendizado humanos.
Não é essa exatamente a impressão que temos ao ler suas cartas: ali, um
ser muito humano, contraditório e ambivalente, desenvolve-se diante de nós. A
edição completa se estende por 7 volumes; existem, também, seleções de apenas
um volume (como, por exemplo, Letters of
Mozart, Dorset Press, New York). Tendo viajado desde muito cedo, como
músico-prodígio (ele nasceu em 1756), deu concertos por praticamente toda
Europa, a partir dos 6 anos de idade. Daí o fato de ter escrito muito para seus
familiares, mesmo antes de se casar (1781), quando, novamente afastado de
Salzburgo, correspondeu com os parentes intensamente. Grande parte dessas
cartas foi escrita para o pai (naquelas viagens em que este último não pôde
acompanhá-lo). É verdadeiramente revelador seguir as tentativas de diálogo que
W. A. Mozart procurou estabelecer com Leopold Mozart.
Pai e filho trabalhavam, como músicos, para a corte do príncipe-arcebispo
de Salzburgo, Conde Jerome Colloredo. Este tratava seus súditos com dureza:
como músico da sua casa, Mozart não passava de um criado, e como tal fazia suas
refeições com eles, por exemplo (Mozart, numa carta: “não sabia que eu era um
criado”). Razão pela qual pai e filho sempre quiseram conseguir outros empregos,
o primeiro inclusive tentando usar o talento do segundo para isso. Leopold
Mozart sempre reconheceu a enorme capacidade do seu filho (“você acha que todo
mundo tem seu gênio?”), mas repetidamente aconselha-o a facilitar seu trabalho,
torná-lo mais fácil e digerível para as plateias europeias. (“Se você escrever
algo para publicação, faça-o popular e fácil para os amadores” e “recomendo
que, quando você estiver trabalhando, pense não somente no público musical, mas
também no não musical. Não negligencie o popular”). Leopold Mozart não aceita e
não aprova o casamento de Mozart com Constanze, por esta ser inferior,
socialmente.
No mesmo império austro-húngaro, mais de um século depois, um escritor
(Franz Kafka) tentará resolver suas diferenças com seu pai por meio de uma
carta (Carta ao Pai). O pai de Kafka
nem chegou a lê-la (ela não foi entregue), e nunca respondeu ao escritor. Mas a
reprovação ao filho em geral e à ideia do casamento é a mesma nos dois casos.
Diferente mesmo é o investimento no filho: o pai de Mozart investiu desde muito
cedo na sua capacidade musical; o pai de Kafka nunca investiu na literatura do
filho. Ilustrativo é o fato de Kafka não ter enfrentado a proibição paterna:
ele nunca se casou, apesar de ter ficado noivo três vezes. Essa incapacidade de
enfrentar o pai marcou profundamente suas ficções: nelas abundam personagens
esmagados (literalmente) pela lei, o outro nome do pai, segundo Lacan.
Mozart enfrentou o veto paterno não só quanto ao casamento, mas também
quanto à sua carreira profissional. Tudo isso de uma maneira ambivalente e
torturada, mas efetiva. Até à época de Mozart, um músico dependia do trabalho,
assistência e emprego dos nobres para trabalhar e sobreviver (um exemplo muito
próximo de Mozart: Joseph Haydn, que foi o músico – regente de orquestra –
durante quase toda sua vida, de um dos nobres mais ricos do império austro-húngaro,
o príncipe Esterházy). Mozart tentou, então, algo que o sociólogo Norbert Elias
disse que era possível, mas ainda muito difícil: ser um músico (profissional)
autônomo.
Criado na corte do príncipe-arcebispo de Salzburgo, tendo viajado por
toda Europa, conhecido e recebido por praticamente todas as casas reinantes do
continente (Áustria, França, Inglaterra e as cortes das cidades alemãs, por
exemplo), Mozart introjetou muito cedo não só a música dessa sociedade, mas
também os seus valores e maneiras (aos 6 anos ele pediu em casamento a princesa
Maria Antonieta, então com 7 anos e morando na cidade de seus pais, Viena – a
mesma que, 30 anos depois, já casada com Luís XVI, a Revolução Francesa
decapitaria). Repetidas vezes tentou empregar-se junto aos rei e príncipes
europeus, e falhou em quase todas elas. Ao mesmo tempo, tinha uma consciência
perfeita do seu gênio e da sua capacidade musical: “no que concerne à música,
estou completamente cercado por animais irracionais. Como poderia ser de outra
maneira?” Ou então, “não posso escrever poeticamente, pois não sou poeta. Não
posso organizar artisticamente minhas frases, para dar a elas luz e sombra. Não
sou, muito menos, um pintor; também não posso expressar meus pensamentos por
meio de gestos ou mímica, pois não sou um dançarino. Mas posso fazer tudo isso pelos
sons. Sou um músico.” O cortesão bem treinado (e o filho obediente) tentava
obedecer, propiciar e conseguir colocações vantajosas; o músico genial e
brilhante não conseguia aceitar a idiotia dominante e satisfeita.
Em suas cartas, essa ambivalência está clara: seguidas declarações de
obediência ao pai e à Deus, e, conjuntamente, reafirmações orgulhosas da sua
capacidade musical. Esta última, aos poucos, foi vencendo a disputa interna.
Primeiro ele se casou; depois, conseguiu ser despedido pelo odiado príncipe-arcebispo
de Salzburgo (tendo levado, inclusive, um chute no traseiro do chefe de cozinha
deste, o Conde Arco), incorrendo mais uma vez na desaprovação paterna (que
queria ver Mozart saindo de Salzburgo somente depois de conseguir um emprego
seguro e honroso). A partir daí, passou a ser um músico (profissional)
autônomo, dando concertos que as plateias pagavam, como atualmente, publicando
suas partituras por algumas editoras, recebendo pelas óperas que ele próprio
dirigia. No princípio da década de 1780 esse esquema funcionou bem; no final de
sua vida (ele morreu em 1791), passou terríveis necessidades financeiras.
Mozart começou algo que Beethoven, alguns anos depois, na mesma Viena,
conseguiria realizar: não depender da nobreza (ou da Igreja) para viver
decentemente.
Foi por essas escolhas dolorosas, difíceis e desafiadoras, que Wolfgang
Amadeus Mozart forjou seu destino e criou seu próprio caminho: uma síntese
entre a tradição e a revolução. Sua música quase sempre teve a graça, o
equilíbrio e a perfeição que a aristocracia, as religiões e as monarquias
procuram, mas raramente conseguem (“eu realmente não tenho nenhuma pretensão à
originalidade” ou “posso muito facilmente assimilar e imitar qualquer tipo e
estilo de composição”); ele tinha, também, um ímpeto revolucionário
inconsciente (sabe-se que a política nunca o interessou, pessoalmente): é só
ouvir suas óperas, “Don Giovanni”, “Le Nozze di Figaro” e “Così Fan Tutte” (“as
óperas de Mozart existem precariamente num momento de transição, entre velhos e
novos regimes na sociedade e na música”, afirma Peter Conrad, em A
song of love and death). Quando ele morreu, a Revolução Francesa estava
acontecendo.
Beethoven e
Wagner consideravam “Così Fan Tutte” imoral. Peter Conrad, no livro citado, diz
que “os dois maiores personagens de Mozart são revolucionários.” Otto Maria
Carpeaux lembra que “Don Giovanni” antecipou a Revolução Francesa em dois anos,
e segundo Norbert Elias, “Le Nozze di Figaro” desagradou imensamente à nobreza
austríaca, que, partir de então, abandonou o músico à sua própria sorte.
Compositor de obras originárias, ao mesmo tempo do passado nobre, popular e da
nova tentação revolucionária, Wolfgang Amadeus Mozart conseguiu realizar uma
síntese que foi só dele: foi, sim, o anjo tutelar da arte (música) ocidental,
mas também e concomitantemente o anjo exterminador, aquele que anuncia o fim de uma época, e o início de outra.
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* Doutor em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG com pós-doutorado pela Escola de Comunicação da mesma instituição. É autor dos livros Escrever com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard e Godard, cinema, literatura (ambos publicados pela Editora Crisálida). Traduziu os livros Tudo que vive é sagrado (poemas de William Blake e D. H. Lawrence), Canções da inocência e da experiência (Blake) e O livro luminoso da vida (Lawrence), todos pela Editora Crisálida. Organizou Presença do CEC: 50 anos de cinema em Belo Horizonte (Crisálida), e, junto com Ana Lucia Soutto Mayor, o livro Godard e a educação (Editora Autêntica); além de ter diversos ensaios publicados. Escreveu roteiros de cinema (filmados), dirige e escreve ensaios videocinematográficos para o programa Cine Magazine, da Rede Minas.
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* Doutor em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG com pós-doutorado pela Escola de Comunicação da mesma instituição. É autor dos livros Escrever com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard e Godard, cinema, literatura (ambos publicados pela Editora Crisálida). Traduziu os livros Tudo que vive é sagrado (poemas de William Blake e D. H. Lawrence), Canções da inocência e da experiência (Blake) e O livro luminoso da vida (Lawrence), todos pela Editora Crisálida. Organizou Presença do CEC: 50 anos de cinema em Belo Horizonte (Crisálida), e, junto com Ana Lucia Soutto Mayor, o livro Godard e a educação (Editora Autêntica); além de ter diversos ensaios publicados. Escreveu roteiros de cinema (filmados), dirige e escreve ensaios videocinematográficos para o programa Cine Magazine, da Rede Minas.