sexta-feira, 1 de abril de 2016

André Di Bernardi encontra Mário Coutinho



Entrevista concedida a André Di Bernardi, do jornal Estado de Minas, sobre o romance “A explosão e o suspiro ou um corpo que cai”.

1) "Narrar exige o risco". Este alerta aparece já na apresentação do seu livro. A que tipo de perigos fica exposto o escritor quando se depara com a página em branco?
O maior risco de um escritor diante de uma página em branco é a invenção. Ou o silêncio. Mas se ele quer se expressar, tem de enfrentar o perigo: criar personagens, situações, tramas, diálogos que, por mais que alguns queiram, não é a realidade, mas fabulação. E o autor é responsável por cada palavra, ação, acidente ou incidente que escreve e descreve: quer perigo (ou risco) maior?

2) Qual é a história do livro? Fale um pouco sobre o processo de construção do enredo do livro. Fale um pouco sobre o processo criativo.
O livro trata de um momento crucial da história brasileira: a luta armada contra a ditadura militar, na década de sessenta. Um homem e uma mulher ficam fechados num "aparelho", sem comunicação com o mundo. Acontece o que sempre se pode prever numa situação como essa. Eles têm que se exilar, em outro país: primeiro é o Chile, depois a Austrália. Um pouco da história do Brasil e do mundo desfila diante de nossos olhos. Resumindo: trata-se de uma tentativa de releitura, num romance moderno, das "Tragédias do Ciclo Tebano", de Sófocles ("Édipo Rei" é uma das peças deste ciclo). O que me levou a escrever este romance foi um roteiro cinematográfico que escrevi alguns anos atrás: o roteiro havia sido escrito a partir do que os franceses chamam "fait divers", isto é, uma notícia de jornal (mãe que havia entrado na guerrilha urbana com dois filhos). Mudei razoavelmente a história original, realmente acontecida, assim como transformei o roteiro extensamente, quando quis escrever o romance (desde o momento que comecei a escrever o roteiro, sabia que faria o romance. Passaram-se muitos anos, mas realmente o escrevi). Cada estrutura narrativa (matéria de jornal, roteiro, romance) pede uma nova estrutura, uma nova linguagem, uma nova maneira de contar. Adequar o que estava tentando fazer à linguagem literária (romanesca) foi todo meu esforço durante o tempo que levei para escrever este romance.

3) Em quanto tempo o livro ficou pronto?
Levei mais ou menos um ano para escrevê-lo. E quatro para revisá-lo inúmeras e inúmeras vezes...

4) Qual foi, ou quais foram suas maiores dificuldades para escrever o livro?
Muito cedo na feitura deste livro, ficou claro que eu queria escrever uma versão moderna das "Tragédias do Ciclo Tebano", de Sófocles. A maior dificuldade que enfrentei, então, foi adequar essa intenção e objetivo com o enredo que eu estava "criando, e atualizando". Outra dificuldade que tive foi ao escrever o final do romance. Mas essa dificuldade foi vencida com uma certa dose de inventividade: a partir de um determinado momento, decidi que o romance teria dois finais, e que o leitor escolheria aquele que preferisse (até mesmo podendo inventar outro, caso sentisse essa necessidade).

5) Também está na apresentação da obra: o livro é "um narrar que é uma reflexão sobre o ato de narrar, trazendo ares de um metarromance em que o narrador/autor se vale larga e radicalmente da intertextualidade, da citação, da montagem para construir uma história que mais é uma ode à vida". Por favor, fale um pouco sobre isso. 
A arte moderna (romance, cinema, poesia) é quase sempre metanarrativa. Estamos quase sempre lendo (ou vendo) obras que descrevem como foram feitas, como foram imaginadas, como foram desejadas... Não é de se espantar, portanto, que neste quadro, eu tenha procurado refletir sobre o que exatamente estava fazendo, ou melhor, o que o personagem-narrador do livro queria fazer. Ao discutir isso ele está se justificando, mas ao mesmo tempo, tentando se inserir numa tradição... Tudo que escrevo, afirma a vida, mesmo na tragédia, principalmente na tragédia... Isso aprendi com os gregos, com Nietzsche, William Blake e D. H. Lawrence.

6) No livro existem inúmeras citações, fragmentos de frases de vários autores. Como funciona para você, na obra, este diálogo constante com outros autores. Qual a importância deles para o entendimento do livro?
Aprendi com Jean-Luc Godard como citar toda a cultura moderna (não somente a literatura) e apesar disso, fazer um texto seu, totalmente seu. Todo livro é a reação a um outro livro, a não ser o primeiro livro, que ninguém sabe qual é. Vários escritores afirmaram: a literatura é um feito da linguagem, nunca a realização de algum nome individual e autárquico. Assim, quando numa passagem, num diálogo, num acontecimento do romance eu chegava perto de uma frase de um outro autor, de um verso, ou outro qualquer texto, não tive pudor: citei este autor. Dessa maneira, dialoguei com várias obras e autores; por isso, acredito que meu romance foi criado a várias vozes: não somente com a minha, mas com a colaboração da História da Literatura, ou parte dela. Entender isso é essencial para a compreensão do meu romance. Dessa maneira, esses vários autores como que compõem um coro, exatamente como na tragédia grega: essas vozes como que comentam, poetizam, e relançam a ação para outros caminhos...

7) Narração, carta, confissão, testamento, diário, biografia e memória. Ao lermos o livro tudo isso se mistura, aparece e desaparece num véu, numa trama muito bem construída. Fale sobre esse processo. 
O romance é um gênero todo-poderoso exatamente por causa disto: ele pode ser tudo isto, e muito mais: poesia, prosa, ensaio, música... Resumindo: ele não é um gênero puro, mas o exato contrário: impuro e todo misturado por escolha e autodefinição. Daí sua enorme capacidade de síntese e suas quase infinitas possibilidades de expressão

8) No texto surgem nomes da alta literatura, como Jorge Luis Borges, Valéry, Deleuze, Mallarmé, Shakespeare, Octavio Paz, entre muitos, muitos outros. Sei que o leque de autores que fazem parte de seu universo é extenso, mas, você poderia citar alguns nomes que realmente influenciaram na sua literatura? 
Além dos que você citou, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Stendhal, Jean-Luc Godard, Hitchcock, William Bake, D. H. Lawrence, Georges Bataille, Kenji Mizoguchi, T. S. Eliot, Rainer Maria Rilke, Sófocles, Nietzsche, Julio Cortázar, James Joyce, Slavoj Zizek, Gustave Courbet e muitos, muitos outros...

9) O livro, que já no título faz alusão a Alfred Hitchcock, é dedicado a André Bazin e Jean-Luc Godard. Em que medida o cinema o influenciou na trajetória, no enredo, na elaboração do livro? 
Sou responsável por três livros sobre Jean-Luc Godard (e participei de um quarto); traduzi um livro de André Bazin, que sairá em breve, no próximo mês, provavelmente, pela Editora Autêntica; escrevi muito sobre Hitchcock em jornais e revistas, e meu próximo livro, depois das traduções de Bazin, será sobre ele (o livro já está pronto). Como você pode ver, seria difícil eles não estarem no meu romance. Como? Resumidamente, Godard e Bazin me ensinaram a articular a descrição da realidade com a invenção. E Hitchcock teve particular importância quando se tratou de construir um clima para o meu romance. Além de contribuir para a criação de uma cena muito importante, que convido o leitor a descobrir...

10) Fale um pouco sobre a experiência de ter publicado este primeiro romance.
Já havia escrito alguns roteiros cinematográficos (filmados); portanto a linguagem da ficção não era estranha para mim. Mas o romance é uma outra linguagem, uma outra forma, que tive que aprender enquanto escrevia. Para isso, me valeu minha enorme experiência de leitura: acho que desde os nove anos leio este formato tão includente, o romance. Ao final e ao cabo, uma aprendizagem muito difícil, mas extremamente prazerosa.

11) Quais são seus projetos para o futuro na área da literatura?
Ainda não parei para examinar esse problema. Mas quase que certamente tentarei escrever o destino de um dos personagem deste romance...

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